terça-feira, 16 de janeiro de 2007

IMUNDO

Casas; árvores; carros; pessoas; pássaros. A vista aqui de cima me cansa. Esse é meu lugar favorito, da casa, mas acho que devo cobrir a janela. Cansei da claridade. Cansei do mundo.Do exterior. Do lado de fora da janela, do vidro, dos cavaletes. Cansei.

Talvez a poeira me consuma assim como consumiu o sótão onde eu durmo. Onde eu vivo. Onde escrevo minha história. História que já nem sei onde está. Onde eu a larguei? No armário, talvez. Seria bem mais fácil se eu soubesse com certeza onde fica o armário. Todo esse pó prejudicou minha visão, meu olfato e minha voz. Mas minha audição está perfeita, consigo escutar ruídos inaudíveis, coisas de outro mundo. De outras vidas. E ainda tenho muito tato. Tanto que, meus sentimentos, sinto, com os sentidos. Os poucos sentidos que me restam. Dos que faço pouco caso. Dos que me matam por ainda estarem aqui.

Moro com a minha avó. Na verdade, sem ela. Moro no sótão da minha avó desde a morte de meu avô. Faz anos que o sol não me toca, e que eu não toco o sol. Minha pele foi aquém do tom branco-transparente. Está seca, assim como a poeira, como meu quarto, meu sótão. Eu saio à noite, de vez em nunca, para conseguir – ou tentar conseguir – minhas drogas. Sou diferente de todo adolescente fútil – os incompreendidos pela vida – de hoje em dia. Diferente deles, não uso drogas para fugir do mundo em si, uso para entrar em meu mundo. Fazer minha história, compor, escrever minha vida.

Queria achar meus papéis. Minhas letras. Minhas histórias. Vivo descalça nesse quarto. A poeira já está à altura do peito-do-pé. Imagino quantas doenças já devo ter contraído e quantas já devo ter expelido. Pelos meus pulsos, meus pulsos cortados. Cortados em transversal, pois, não quero me matar. Quero fazer arte. Fazer arte do meu sangue. Do meu sangue fazer arte. Quero mostrar ao mundo que a arte jorra por meus poros, ou, por minhas veias. Minhas veias cortadas, dilatadas, mutiladas, distribuídas por aí. Pelo chão do quarto, embaixo da cama, perto da estante.

Perdi a conta de quantos dias não tomo banho. A água maltrataria minha pele que, a poeira, fez questão de cuidar. Meu quarto, o sótão, é de imensa fauna. Existem animais – insetos – de todas as espécies. Insetos venenosos, víboras asquerosas, vermes generosos. Todos a meu favor, às minhas ordens, ou não. Fazem o que querem, badernam a noite inteira, o dia todo. São governados pelos ratos. Tenho certeza. Afinal, tudo hoje em dia, é governado por ratos. Não ratos qualquer. Não quaisquer ratos. Ratos espertos, saídos do esgoto, ratos malandros, sabidos, não ratos trouxas caindo em ratoeiras por misérias de queijos. Com aparência boa, o mesmo cheiro de podre, de esgoto, mas uma boa imagem. Afinal, aquele que não é fotogênico não se ergue, não no reino dos roedores, pelo menos.

“Elis, Juliana veio lhe visitar”.Quanto tempo faz que ninguém me visita?

“Menos de 24 horas, Elis, chega de drama. Você vai sair comigo hoje. Tome um bom banho. Arrume-se. Te emprestarei algumas roupas. Preciso te tirar desse lugar imundo. Não consigo entender como alguém pode viver aqui em cima. Ainda mais no escuro!”

Não se pode divagar nesse mundo?

“Divagar é tudo o que você faz. Fica o dia inteiro aí com sua melancolia e suas fantasias. Trancada no seu mundo particular onde só você existe. Você tem que sair dessa vida. Chega, Elis, uma garota tão linda como você não pode ficar trancafiada dentro de um sótão imundo como esse.”

Uma garota tão linda como eu pode muito bem fazer o que der na telha. Garota... ham. 24 anos e ainda sou obrigada a escutar uma dessas.

“Garota, sim. Porque é o que você parece. Uma menininha, infantil, criança. Fazendo coisas de adolescentes bobas de 15 anos que tanto dizem que são depressivas. Depressão... coitadas, mal sabem elas o que isso é realmente.”

Elas podem não saber. Mas eu sei. Sei tanto que vivo dentro de uma bolha e não quero sair dela. Pelo menos me entendo comigo. E com minha dor. Minha dor me entende e assim me trata bem. Procuro meu amor, oh amor, que te perdi, perdi embaixo de minha cama, junto com algumas camisinhas usadas e outras furadas. Junto com orgasmos mutilados e outros multiplicados. Esqueça, oh amor, não te quero mais pra mim, quero apenas te encontrar e ver teu fim.

“Eu tenho medo de você, sabia, Elis? Das coisas sem sentido que você fala. Você perde seus amigos pouco a pouco. Não percebe? Nunca se deu conta? Você precisa mudar”.

Péssima mania essa, do ser humano, de achar que tudo que está fora do padrão tem que mudar. Mudar... não exatamente mudar, apenas, entrar no padrão. Voltar ao normal. O kitsch é inaceitável pelos normais. A burguesia manda, os capachos obedecem, as engrenagens giram. Assim o mundo roda e se afoga indo pro lado oposto do que deveria ser correto. Eu nem me atrevo a dizer o que é correto e o que não é, mas poderia ser. E o que é errado. Exato. Já era. Não me atrevo. Posso ser a rainha da melancolia. Mas tenho medo de julgamentos, e é o que fazem quando alguém se atreve. Eles julgam. E você vai ralo abaixo junto com as baratas e alguns vermes.

Deixe-me aqui, Carina. Tenho que procurar minha história. Tenho que me descobrir.

“Juliana, Elis, Juliana. Que saco.”

Odeio Juliana. Não combina com seu rosto. Nem com seus cabelos. Além do mais, dei meu recado, não quero sair.

Detesto ter de falar assim com meus “amigos”. Mas fazer o que se prefiro ficar sozinha? Quero ficar aqui, me deixem. Deixem-me com minha história, minha poesia, minha arte. Minha história, onde está?

Tenho que achar o armário. Está escuro, não vou abrir a janela, os insetos podem entrar. E reinar, me expulsar do meu lugar. Seria interessante ver a briga com os ratos. Tenho medo de procurar minha história embaixo da cama, tenho medo do que possa encontrar. Abaixo do colchão é um infinito. Um infinito de misérias. Mas está ali, esquecido no lugar mais escuro do meu mundo. Embaixo da cama, do colchão, quem reina ali embaixo? Ainda os ratos? Ou será que são os fracos? Alguém reina?

Minha visão está ficando cada vez pior. Meu olfato se estragando com tanto pó. Minhas narinas dilatando. Minhas pupilas derretendo pouco a pouco. Mas escuto bem, ah, escuto sim. Escuto os vermes conversando, são bons, ótimos matemáticos, principalmente em multiplicação. Se multiplicam e dominam. Julgam-se mais espertos. E são mesmo. Ai daquele que em pleno século XXI não seja um verme. Uma simples baratinha.

Com tanto pó e tanta escuridão não vejo por onde ando. Tropeço em algo, um barulho oco, seco, leve. Há papeis aqui, com escritas, com rabiscos. Desenhos de certas vidas que estão mortas. Minha história. Encontrei. Minha história. O tempo todo na lixeira, na sarjeta, no lixo. Minha vida inteira, no lixo. Como minha poesia, na sarjeta. No esgoto como os ratos, com os ratos, minha história no lixo. No simples cesto do infinito. Oh, minha história. Minha arte; fantasia. Parei de divagar desde o lixo. Encontrei meu motivo, minha história, minha arte. Meu lixo particular. O mundo, esse mundo, imundo, que eu vivo.




(algumas citações: Santiago Nazarian; Marica Tiburi)

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

ALGUNS CONTOS E UNS TROCADOS.

Tudo se baseia em Elis.
Menina; garota, ainda não uma mulher.
Uma adolescente querendo transcender, transgredir, querendo descobrir seu próprio caminho sem a ajuda de ninguém. Mesmo se quisesse, não teria a ajuda de ninguém. Afinal, ninguém, é tudo e todos que ela conhece, sabe e tem.
Andando sempre com sua anestesia entre os dedos. Pronta para se safar de quaisquer dos problemas banais que tanto afligem o ser-humano. Por aí, pelo mundo, com suas drogas, sua arte e seus amigos imaginários. Sobrevivendo, apenas, sobrevivendo.