Claridade.
Pra quê tanta luz? Apaga. Apaga! Luz que arde, que machuca, que incomoda.
Besteira é pensar que clareia. Clareia nada. Clareia o quê? As lembranças de
uma noite escura e sem ar? Clareia a memória do odôr da alvorada? Calma, é só a
cortina. Calma. Vou fechar. Vou fechar os olhos – cortina eu não tenho.
Nas
frestas de uma pálpebra semiaberta, semifechada, enxergo partículas malditas de
poeira que entram pela janela. Mas ela está fechada. Mesmo sem cortina. Está
fechada. Vou me levantar.
Cara
a cara comigo, no espelho, me arrependo de ter levantado. É tanta água no rosto
que quem vê a cena, de fora, imagina que quero me livrar de qualquer resquício
da malícia noturna. Qualquer sobra de poluição, cinza de cigarro, perfume
vagabundo ou batom desordenado que possa ter grudado. Passo minunciosamente o
fio-dental, fresta a fresta, a fim de alvejar cada podridão que possa ter
entrado por essa boca. E eu garanto: não foi pouca. Nem tão porca. Mas não foi
pouca. Engraçado que para limpar a memória eu não preciso de esforço. Basta
acordar.
Como é difícil caminhar, retornar,
ao aconchego do seu quarto banhado de luz, calor, barulho da rua e do
ventilador. Nesses dias tudo é mais devagar. Os músculos reagem antes do
cérebro e, ao darem conta da falha, da falta de respeito, simplesmente param. E
o cérebro, ao perceber suas ordens não cumpridas, também castiga com uma pausa.
A única coisa que não para, nele, é a vontade de explodir e de acabar com cada
pedaço teu que fez questão de o maltratar.
Quando em ressaca, nunca sabemos ao
certo se o que ouvimos, ouvimos mesmo, ou se estamos a ouvir um grito da alma,
chorando por clemência e pedindo um pouco de luz – tudo o que não quero. Fato é
que ouvi algo, sim, algo como um ronco, um suspiro ou um simples bom dia.
Desespero.
Ela dormia, linda, linda, como se
tivesse ensaiado várias e várias vezes para conseguir dormir com tanta beleza,
tanta perfeição. Cada suspiro em seu lugar. Cada fio de cabelo milimetricamente
posicionado. Linda. Mas quem?
Decidi ir à cozinha, vou fazer café,
acender um cigarro, beliscar alguma besteira e esperar. Eu sei, acabei de
escovar os dentes. Café e cigarro não são lá uma boa mistura. Tudo bem. Não é
todo dia que procuro por uma explicação tão valiosa. Vou aguardar.
Um tempo.
- Vem cá. Vem. Vem depressa. Vem me
dar notícias do seu corpo.
Último gole. Cigarro no fim. Pra quê
tanta luz? Apaga. Apaga!