segunda-feira, 30 de junho de 2014

FIM

Naquela noite ele havia dormido no lugar dela na cama. O lado que havia sido democraticamente separado só para ela. De manhã preparou seu café, como sempre faz, e esquentou o leite dela, mesmo sendo alérgico a lactose. Sentou-se só.
            Nesse dia ele não saiu para procurar emprego. Não encheu o saco de ninguém e ninguém o incomodou também. Ele era fraco. Sempre foi. E ela o conseguia empurrar. Mas, nesse dia, ele precisava de alguém que o arrastasse. Se arrastou pro bar.
            Foram tragos e mais tragos que nem sei contar. Não lhe trouxeram nada, é claro, mas a cada gole vinha a vontade de cair no mar. Pediu só mais sete doses - uma para cada dia da semana que seguia. Pulou as sete ondas e caiu. Não sei bem se o barulho era do vento, das ondas ou de choro. Mas lembro que o vi levantar antes de cair de novo e se arrastar para a areia. Esse não foi seu fim. O fim já foi. Esse fim é passado e será presente.

            Estava tarde, ele precisava voltar, precisava parar de se arrastar no chão. Nessa noite, ele ia dormir no lado dela do colchão.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Trecho de: O APARTAMENTO, A FRANCESA E O CENTRO

            
           Fechei a porta. Já estava puta com o sereno e, bom, pode ser estranho, com o pouco barulho da rua. Não que eu seja daquelas que preferem o caos à paz. Eu prefiro a paz, juro, mas a minha cabeça estava um caos e nada mais justo que o resto do mundo ficasse no mesmo nível. Também odeio o fato daquele infeliz ter me feito queimar o último cigarro do meu maço. Devia ser crime acordar uma mulher e irritá-la a ponto de fazê-la gastar o último cigarro. Crime. E não pense que pílulas resolveriam o meu problema, pois tenho certeza que o meu problema está se resolvendo por aí, pela rua, nesse exato momento, em algum tipo de orgia, ou outra coisa tão solitária quanto. Pílulas nunca me trouxeram felicidade, apenas prejuízo financeiro. Prefiro a boa e velha cerveja.
            No meu quarto você encontra dois armários, não que eu tenha roupa demais – não tenho – é que eu tenho tralha demais. Sou dessas que guardam tudo o que um dia fez sentido, com carinho, num cantinho só seu. Duas cômodas. Um criado-mudo. Uma cama de casal com o lado esquerdo mais fundo que o direito. Uma escrivaninha com um computador velho e um abajur. E uma caixa em cima do armário maior. Uma caixa onde eu costumo... costumava... guardar coisas importantes de um passado sem importância.
            O ponto é: com tantas gavetas e portas à disposição, por que, merda, tinha que abrir a caixa? Madrugada, sem cigarro, com os joelhos ralados e uma cicatriz novinha na perna, tudo o que me faltava era soltar todos os fantasmas que demorei tanto tempo para prender.

            Em algum momento, que não sei dizer, os papeis pareciam mover-se sozinhos. Eram tantos. E tão rabiscados. Uns realistas, outros abstratos. Tristes. O sol já batia à janela, anunciando mais uma noite de sono perdida. E à janela, também, vinha o barulho que faltava para sentir um pouco de vida. Eu, encharcada de sal e melancolia, com o vestido quase transparente de tanto suor, lágrimas e descobertas, sentia-me muito mais pesada. Buzinas, fumaças, batidas e berros traziam o começo de outro dia que eu nunca quis. Tive que fincar os joelhos no taco para perceber: nunca te fiz feliz.



Trecho do capítulo O Apartamento, A Francesa e O Centro - do livro "Laura".

sexta-feira, 11 de abril de 2014

CONSERVA

Claridade. Pra quê tanta luz? Apaga. Apaga! Luz que arde, que machuca, que incomoda. Besteira é pensar que clareia. Clareia nada. Clareia o quê? As lembranças de uma noite escura e sem ar? Clareia a memória do odôr da alvorada? Calma, é só a cortina. Calma. Vou fechar. Vou fechar os olhos – cortina eu não tenho.
Nas frestas de uma pálpebra semiaberta, semifechada, enxergo partículas malditas de poeira que entram pela janela. Mas ela está fechada. Mesmo sem cortina. Está fechada. Vou me levantar.
Cara a cara comigo, no espelho, me arrependo de ter levantado. É tanta água no rosto que quem vê a cena, de fora, imagina que quero me livrar de qualquer resquício da malícia noturna. Qualquer sobra de poluição, cinza de cigarro, perfume vagabundo ou batom desordenado que possa ter grudado. Passo minunciosamente o fio-dental, fresta a fresta, a fim de alvejar cada podridão que possa ter entrado por essa boca. E eu garanto: não foi pouca. Nem tão porca. Mas não foi pouca. Engraçado que para limpar a memória eu não preciso de esforço. Basta acordar.
            Como é difícil caminhar, retornar, ao aconchego do seu quarto banhado de luz, calor, barulho da rua e do ventilador. Nesses dias tudo é mais devagar. Os músculos reagem antes do cérebro e, ao darem conta da falha, da falta de respeito, simplesmente param. E o cérebro, ao perceber suas ordens não cumpridas, também castiga com uma pausa. A única coisa que não para, nele, é a vontade de explodir e de acabar com cada pedaço teu que fez questão de o maltratar.
            Quando em ressaca, nunca sabemos ao certo se o que ouvimos, ouvimos mesmo, ou se estamos a ouvir um grito da alma, chorando por clemência e pedindo um pouco de luz – tudo o que não quero. Fato é que ouvi algo, sim, algo como um ronco, um suspiro ou um simples bom dia. Desespero.
            Ela dormia, linda, linda, como se tivesse ensaiado várias e várias vezes para conseguir dormir com tanta beleza, tanta perfeição. Cada suspiro em seu lugar. Cada fio de cabelo milimetricamente posicionado. Linda. Mas quem?
            Decidi ir à cozinha, vou fazer café, acender um cigarro, beliscar alguma besteira e esperar. Eu sei, acabei de escovar os dentes. Café e cigarro não são lá uma boa mistura. Tudo bem. Não é todo dia que procuro por uma explicação tão valiosa. Vou aguardar.
            Um tempo.
            - Vem cá. Vem. Vem depressa. Vem me dar notícias do seu corpo.

            Último gole. Cigarro no fim. Pra quê tanta luz? Apaga. Apaga!

sábado, 8 de fevereiro de 2014

ÚLTIMA BONECA


Era vestidinho rendado; boné de lado; melissa e tênis que pisca.
Ficar descalços na areia; chamar de bobo, mostrar a língua e falar que é feia.
Bonecas de um lado, bola do outro, sorriso riscado e banco de areia.
Sentar na calçada, rodar o chinelo, manter a distância e evitar a faísca.

Em mim tu não encostas. Pra ela arrepio; pra ele, cócegas.
Era guerra. Era santa. Eram lindas, eram tantas.
Eram tudo o que elas não queriam querer.
Eles, tudo evitavam perder.

Fazer fila; apontar; escolher; gargalhar.
Na caixa de brinquedos a inocência deixar.
Lhe dar o caderno e deixá-la escrever.
Não há nessa rua como não se perder.

Não quer mais leite no copo. Trocou por café na caneca.
Agora é sair, contar, inventar, rir. Os outros, inveja sentir.
Ciúme deu lugar à vergonha. O rosa ao vermelho. E a vontade de mentir.

Sem sorriso; sem espelho; sem renda e sem festa.
Se trancar no banheiro, sem heróis nem cavalos que falam inglês.
Ele saiu, chutar bola, foi brincar.
Ela ficou, segurar choro, sua última boneca irá quebrar.