domingo, 22 de maio de 2011

VALSA PARA A JOVEM ESCRAVA

Ele:
Mira. Mira, que tu eras, quem diria, a mulher que eu esperava em agonia.
Ia... ia e voltava como quem dizia, lá no fundo, não queria.
Corria sempre que eu deixava para trás o meu chapéu e a sua fantasia.
Fingia. Vestia seu melhor vestido, mordia o lábio alheio e dava a partida.
E eu morria... morria... morria.

Ela:
Olha. Molha. Eu nunca pedi para ser a heroína da sua história.
Que glória. Derrota. Espanco seus momentos sem vontade e te empurro para fora.
Tu choras. Derruba outro gole, foge, mole, e se apavora.
E toca. Toca, em meu corpo, seu suor à consciência e sai à forra.
E eu esqueço, te largo e te afago em outra hora.

A Terceira:
Eu sempre soube seus defeitos, não importa, escrevo e corro do seu jeito tão demente.
Ele é tão simples que se acaba num silêncio complicado e num desejo de tormento.
Atormentava sua alma e despejava algum concreto em sua poesia tão molhada e quente.
Nas brincadeiras dessas pernas, eram as deles que perdiam, e pendiam a algo errado e incoerente.
Finalizava nossa perversão num ménage gótico, arrastado, desgraçado e indiferente.
E eu fugia, pois a solidão é mais bonita do meu lado, longe dessa gente.

Foto: Camila Pistoresi

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A VALSA

Dessa vez não havia lágrima alguma. Não havia nada de transparente, pra ser mais exata. Apenas sangue. Muito sangue mesmo. Ele olhava ao redor, procurava um pouco de luz, acho. Mas não encontraria o que queria à noite. Não na minha noite. Aquela era a noite; e isso iria acontecer de novo, e de novo, tinha que acontecer.
Era uma bela noite para tingir alguém. Tirar-lhe daquele velho tom pastel que o acompanhava em todas as investidas e em todos os descaminhos. Estava descontrolada, não posso negar. Mas aquilo tinha de ser feito. E tinha de ser eu. Ele não podia ser mais rápido.
Me incomodava o fato daquele pobre coração bater. De correr algo quente dentro daquele corpo.
Então, montei todo o cenário para que a minha noite fosse perfeita, trouxe-o do jeito que queria à minha teia. Era preciso de poesia para enfiar amor naquele peito e estourá-lo por dentro. A morte dele, por si só, não seria poética o bastante para a minha licença.
E assim foi. Levei-o de volta para o mundo de onde o tirei. Me deixava feliz o fato de que, com certeza, ele ficaria feliz em seu habitat.
Ele, então, parou de procurar o que queria. Não sei se impressão minha ou fato, mas percebi um esboço de sorriso naquele rosto frio, daquele homem fraco. Deitou-se na poça que ele mesmo criou. Encostou-se. Descansou.

quinta-feira, 31 de março de 2011

SEM AÇÚCAR, COM AFETO.


Quando ela foi à cozinha preparar o café-da-manhã eu já a esperava com a xícara mais amarga. Não ia oferecer a ela o café outrora recusado. Não queria esquentar a manhã de um dia nublado.
Ela lançou o olhar que sempre lançava quando eu acordava de mau humor. Era uma gentileza irônica no lugar de  um simples bom dia. Aliás, era uma gentileza irônica pensar que, aquele, seria um bom dia.
Eu vestia luto da cabeça aos pés. Nunca havia acordado daquela maneira: nú, mas com o corpo em luto. Lutei para parecer natural, mas o natural me fazia muito mal.
Antes que ela pusesse seu primeiro pensamento do dia no lugar, eu já havia batizado o café. E antes que ela fizesse sua primeira oração, de bate-pronto, abri a boca para soltar um belo e cinzento: "Meus pêsames".
Eu me adiantei a tudo o que poderia vir depois, se ela o fizesse antes de mim. Me adiantei ao destino - e me adiantei ao meu próprio velório.
Antes que qualquer sinal de lágrima vestisse seus olhos, ela deixou que sua saia caísse. E decidiu que de casa eu saísse.
Eu senti que cada palavra dela tinha o gosto azedo do uísque vagabundo de ontem. E cada palavra que calei tinha o gosto amargo da ressaca de sempre.
Ganhei a aposta. Ganhei, antes mesmo, que ela dissesse o resultado. O seu olhar autoritário da manhã, de olhos tão claros que me faziam apagar, me cantaram o jogo.
Vesti meu luto, novamente, e saí de lá para o poço que, ela sabia, era a única que poderia me tirar.

quarta-feira, 9 de março de 2011

O CRIME DESCONTADO

Ela tinha olhos mais verdes que os morros que complementavam a paisagem em seu retrato. Plantada no ponto, sujeita a qualquer encontro.
Tinha um jeito tão doce que a acabava endurecendo, a tornava impraticável. A tornava para um canto e me deixava noutro lado.
Era um daqueles dias que eu passava a noite inteira sem saber o que fazer. A solução era beber, beber, beber e deixar amanhecer. E quanto mais claro ficava, mais escuros e molhados seus olhos focavam.
Não se sabe ao certo se garôa ou tempestade, mas encharcava tanto que fazia escorregar. Caía, mas ninguém sabe se doía. Levantava num salto e voltava a dançar.
Que jeito mais doce de se consentir. Que jeito mais duro de se reagir.
Ela tinha os olhos mais verdes e o jeito mais denso.
Mas de tenso, não penso, ele foi mais rápido.