terça-feira, 23 de junho de 2015

PINTURA PÓSTUMA DE ELAIR

Monte, então, uma moldura imaginária. Em primeiro plano, ponha dois belos pares de pernas – um bem branquinho, quase de porcelana. O outro, digamos, queimado, de pêlos arrepiados. Anexado a tais, dois vestidos que fazem questão de mostrar cada contorno, risco, rascunho, esboço e ponto de fuga das proprietárias das pernas. Praticamente feitos de nanquim sobre papel manteiga. 
O rosto? Não, nada disso, nada de identidade. Histórias tão tristes, como essa que vos conto, não merecem nomes, sobrenomes, escolaridades ou profissões.
Segundo plano: luzes. Muitas e muitas. De cores, calores e intensidades diferentes. Buzinas e muita gritaria – sim, o quadro é meu e nele haverá sons. 

O cheiro: uma mistura fina de esgoto, urina, gás carbônico e um leve toque do perfume vagabundo favorito das melhores profissionais dessa região. Alguns garis começam a dar as primeiras vassouradas da madrugada. As tais crianças que vivem de luz vão para só deus sabe onde. E os primeiros homens-de-família, que muito batalharam para conquistar tal definição, surgem para esperar seus pacientes transportes ao trabalho. A pincelada final, se assim podemos dizer, são dois travestis, enfiados pela metade do corpo, um em cada janela do carro, motorista e passageiro. Deve ser deste a buzina mais alta.

Se isso fosse um conto, poema, poesia, ensaio, crônica, romance, ou, por que não, uma carta de amor, bastaria que encontrasse umas quantas palavras bonitas, encaixasse nos lugares certos, pusesse uma rima aqui, outra lá e, pronto, está acabado. Mas tratando-se de um quadro, não o basta imagens bonitas, precisa de algo triste, algo que agonia, algo que choca. Na arte em questão, o que choca vem detrás do quadro. Pois é sabido que ele ainda é uma tela em branco. Um pouco manchada do tempo, talvez.

É sabido também – acredito que seja, pelo menos - que as protagonistas desta fotografia tratam-se de uma loira e uma morena. E, não, não, apesar do lindo cenário no momento da pintura, elas não são o que vocês estão pensando. Vamos chamá-las, apenas, transeuntes. Basta que estavam no lugar errado, na hora errada. Ou era eu quem estava neste tal lugar. A verdade, se há verdade para quem sempre viveu num mundo de mentira, é que este lugar é o meu. Sou eu o rei, o dono, imperador e presidente dele. Eu era, ali, o único que tinha o direito de ir e vir. Mas decidi ficar.

Agora, lembrem-se dos pares de pernas de mais cedo. Acredito que vocês também concordem que seria impossível não admirá-los. Perder uns bons segundos, que parecem horas, ainda mais a mim, que há muito não vislumbro com tanto gosto, nem tanta proximidade, tal perfeição. Comia com os olhos, de uma maneira mais grotesca de dizer.

O que eu não podia imaginar, nem vocês, é que tais pernas vinham correndo de desagradável discussão, daquelas bem antigas, protagonizadas pela insegurança masculina gerada por tramas já pregadas no inconsciente coletivo. A mim, que da rua venho e na rua vivo, basta dizer que me pertence tudo o que vejo e que pertenço a tudo que me vê. E pertenci, de verdade, por uma fração de segundo, a uma das donas das pernas. Não me pergunte qual – lembre-se que eu disse que identidades não importam.

Mas bastou uma mirada, dessas de canto de olho, para que um dos dois rapazes, que vinham cheios de amor e disposição para iniciar o segundo tempo da discussão, parasse ao meu lado e começasse a gritar com toda a educação que só um animal faminto e raivoso consegue demonstrar, coisas como “tá olhando o quê” e “nunca viu, imbecil”. Eu bem estava acostumado com tal gentileza, mas no momento não entendi bem do que se tratava.

Bem que percebi que uma das donas levava consigo marcas de dedos, cuidadosamente cravadas, com o carinho que o tempo há de ter dúvidas de quando conseguirá livrar-se, num dos braços. Bastou esse segundinho para perceber o que estava acontecendo e, por que não, aceitar o que o destino me reservava.

Foi essa, então, a última cena que tive o prazer de deleitar antes de encerrar minha história neste quarteirão, nesse metro e meio quadrado que me pertence, na minha cama de papel. Deixaram, ali, bem claro o que pertence a quem e o limite entre o mundo de um e os mundos dos outros. Quase uma guerra de classes, mas sem classe alguma. Se eu fosse juiz, diria que fui vítima de um crime passional sobre terceiros. Mas esse poder não é meu. Resta que fique feliz pois me deram a opção de aceitar. A visão não escureceu. Pelo contrário: clareou. Eu disse que nesse quadro havia todo o tipo de luz.

Monte, então, uma moldura imaginária. Deixe-a assim. Sem tintas, nem lápis, só algumas manchas a sujar. Pois quadros como os meus não hão de faltar.

foto: https://www.pinterest.com/pin/480688960205376798/


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

CARTOLA


Eu já não acho que você vai se importar; mas um sambinha em valsa pude transformar.
Ando fugindo tanto dessa claridade; penso que deve ser melindres da idade.
Fiquei sabendo que andou rodando; e que tens feito desse mundo teu recanto.
Mas descobri que quando bate a saudade; de vir correndo você morre de vontade.

Porém não sofras com lembranças castigadas, quando dizes que este fogo, é fogo bom pra se queimar.
Pois você sabe que és mentira deslavada já que quem sofreu no inferno com fogo não quer brincar.
Se sabes tanto, por que insistes neste pranto, que de nós fizeste ponto, pra nunca nos enroscar; se eu já lhe disse, tantas vezes, esgoelada, que a desgraça de um samba em valsa pude transformar?

segunda-feira, 30 de junho de 2014

FIM

Naquela noite ele havia dormido no lugar dela na cama. O lado que havia sido democraticamente separado só para ela. De manhã preparou seu café, como sempre faz, e esquentou o leite dela, mesmo sendo alérgico a lactose. Sentou-se só.
            Nesse dia ele não saiu para procurar emprego. Não encheu o saco de ninguém e ninguém o incomodou também. Ele era fraco. Sempre foi. E ela o conseguia empurrar. Mas, nesse dia, ele precisava de alguém que o arrastasse. Se arrastou pro bar.
            Foram tragos e mais tragos que nem sei contar. Não lhe trouxeram nada, é claro, mas a cada gole vinha a vontade de cair no mar. Pediu só mais sete doses - uma para cada dia da semana que seguia. Pulou as sete ondas e caiu. Não sei bem se o barulho era do vento, das ondas ou de choro. Mas lembro que o vi levantar antes de cair de novo e se arrastar para a areia. Esse não foi seu fim. O fim já foi. Esse fim é passado e será presente.

            Estava tarde, ele precisava voltar, precisava parar de se arrastar no chão. Nessa noite, ele ia dormir no lado dela do colchão.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Trecho de: O APARTAMENTO, A FRANCESA E O CENTRO

            
           Fechei a porta. Já estava puta com o sereno e, bom, pode ser estranho, com o pouco barulho da rua. Não que eu seja daquelas que preferem o caos à paz. Eu prefiro a paz, juro, mas a minha cabeça estava um caos e nada mais justo que o resto do mundo ficasse no mesmo nível. Também odeio o fato daquele infeliz ter me feito queimar o último cigarro do meu maço. Devia ser crime acordar uma mulher e irritá-la a ponto de fazê-la gastar o último cigarro. Crime. E não pense que pílulas resolveriam o meu problema, pois tenho certeza que o meu problema está se resolvendo por aí, pela rua, nesse exato momento, em algum tipo de orgia, ou outra coisa tão solitária quanto. Pílulas nunca me trouxeram felicidade, apenas prejuízo financeiro. Prefiro a boa e velha cerveja.
            No meu quarto você encontra dois armários, não que eu tenha roupa demais – não tenho – é que eu tenho tralha demais. Sou dessas que guardam tudo o que um dia fez sentido, com carinho, num cantinho só seu. Duas cômodas. Um criado-mudo. Uma cama de casal com o lado esquerdo mais fundo que o direito. Uma escrivaninha com um computador velho e um abajur. E uma caixa em cima do armário maior. Uma caixa onde eu costumo... costumava... guardar coisas importantes de um passado sem importância.
            O ponto é: com tantas gavetas e portas à disposição, por que, merda, tinha que abrir a caixa? Madrugada, sem cigarro, com os joelhos ralados e uma cicatriz novinha na perna, tudo o que me faltava era soltar todos os fantasmas que demorei tanto tempo para prender.

            Em algum momento, que não sei dizer, os papeis pareciam mover-se sozinhos. Eram tantos. E tão rabiscados. Uns realistas, outros abstratos. Tristes. O sol já batia à janela, anunciando mais uma noite de sono perdida. E à janela, também, vinha o barulho que faltava para sentir um pouco de vida. Eu, encharcada de sal e melancolia, com o vestido quase transparente de tanto suor, lágrimas e descobertas, sentia-me muito mais pesada. Buzinas, fumaças, batidas e berros traziam o começo de outro dia que eu nunca quis. Tive que fincar os joelhos no taco para perceber: nunca te fiz feliz.



Trecho do capítulo O Apartamento, A Francesa e O Centro - do livro "Laura".

sexta-feira, 11 de abril de 2014

CONSERVA

Claridade. Pra quê tanta luz? Apaga. Apaga! Luz que arde, que machuca, que incomoda. Besteira é pensar que clareia. Clareia nada. Clareia o quê? As lembranças de uma noite escura e sem ar? Clareia a memória do odôr da alvorada? Calma, é só a cortina. Calma. Vou fechar. Vou fechar os olhos – cortina eu não tenho.
Nas frestas de uma pálpebra semiaberta, semifechada, enxergo partículas malditas de poeira que entram pela janela. Mas ela está fechada. Mesmo sem cortina. Está fechada. Vou me levantar.
Cara a cara comigo, no espelho, me arrependo de ter levantado. É tanta água no rosto que quem vê a cena, de fora, imagina que quero me livrar de qualquer resquício da malícia noturna. Qualquer sobra de poluição, cinza de cigarro, perfume vagabundo ou batom desordenado que possa ter grudado. Passo minunciosamente o fio-dental, fresta a fresta, a fim de alvejar cada podridão que possa ter entrado por essa boca. E eu garanto: não foi pouca. Nem tão porca. Mas não foi pouca. Engraçado que para limpar a memória eu não preciso de esforço. Basta acordar.
            Como é difícil caminhar, retornar, ao aconchego do seu quarto banhado de luz, calor, barulho da rua e do ventilador. Nesses dias tudo é mais devagar. Os músculos reagem antes do cérebro e, ao darem conta da falha, da falta de respeito, simplesmente param. E o cérebro, ao perceber suas ordens não cumpridas, também castiga com uma pausa. A única coisa que não para, nele, é a vontade de explodir e de acabar com cada pedaço teu que fez questão de o maltratar.
            Quando em ressaca, nunca sabemos ao certo se o que ouvimos, ouvimos mesmo, ou se estamos a ouvir um grito da alma, chorando por clemência e pedindo um pouco de luz – tudo o que não quero. Fato é que ouvi algo, sim, algo como um ronco, um suspiro ou um simples bom dia. Desespero.
            Ela dormia, linda, linda, como se tivesse ensaiado várias e várias vezes para conseguir dormir com tanta beleza, tanta perfeição. Cada suspiro em seu lugar. Cada fio de cabelo milimetricamente posicionado. Linda. Mas quem?
            Decidi ir à cozinha, vou fazer café, acender um cigarro, beliscar alguma besteira e esperar. Eu sei, acabei de escovar os dentes. Café e cigarro não são lá uma boa mistura. Tudo bem. Não é todo dia que procuro por uma explicação tão valiosa. Vou aguardar.
            Um tempo.
            - Vem cá. Vem. Vem depressa. Vem me dar notícias do seu corpo.

            Último gole. Cigarro no fim. Pra quê tanta luz? Apaga. Apaga!

sábado, 8 de fevereiro de 2014

ÚLTIMA BONECA


Era vestidinho rendado; boné de lado; melissa e tênis que pisca.
Ficar descalços na areia; chamar de bobo, mostrar a língua e falar que é feia.
Bonecas de um lado, bola do outro, sorriso riscado e banco de areia.
Sentar na calçada, rodar o chinelo, manter a distância e evitar a faísca.

Em mim tu não encostas. Pra ela arrepio; pra ele, cócegas.
Era guerra. Era santa. Eram lindas, eram tantas.
Eram tudo o que elas não queriam querer.
Eles, tudo evitavam perder.

Fazer fila; apontar; escolher; gargalhar.
Na caixa de brinquedos a inocência deixar.
Lhe dar o caderno e deixá-la escrever.
Não há nessa rua como não se perder.

Não quer mais leite no copo. Trocou por café na caneca.
Agora é sair, contar, inventar, rir. Os outros, inveja sentir.
Ciúme deu lugar à vergonha. O rosa ao vermelho. E a vontade de mentir.

Sem sorriso; sem espelho; sem renda e sem festa.
Se trancar no banheiro, sem heróis nem cavalos que falam inglês.
Ele saiu, chutar bola, foi brincar.
Ela ficou, segurar choro, sua última boneca irá quebrar.

quinta-feira, 21 de março de 2013

NÃO É MINHA, NEM SUA


Na minha versão ela era bossa. Nova ela nunca foi.
Na dele, era meio blues. Tinha um compasso retardado, num ritmo torto.
Você não sabe o que é ver sua musa na canção de outro.
Na minha música ela usava saia bordada e rimava com a lua. Na dele, ela andava nua.
Tinha olhos que miravam e miravam sem alvo e sem consolo. Mas se me olhavam nos olhos, buscavam retorno. Retorno na canção dele era contramão. Na minha, era redenção.
Mas pensar em retorno pra quê, se o que ela queria era correr? Correu e fez música em todo lugar que rodou. 
O samba ficou solto, foi passear. Mas a valsa está aí para quem quiser dançar. A música foi minha, mas você que escolhe o par.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

CANTIGA DO SERTÃO



Me empresta um pouco do seu frio, que o calor não me pertence.
Me deixa um pouco dessa seca, que o sertão vem de repente.
Vem sem chuva; sem nuvem; sem suas tão queridas estrelas.
A lua, murcha, não reflete na lagoa seus desejos. Às vezes é melhor dormir pra ver se passam os pesadelos.
Desbravei seu interior em tempos de seca e trouxe um pouco de umidade, um tanto de chuva e às vezes até tempestade. Molhei além da conta e acabei inundando meu cultivo.
Aproveitei essa ressaca e construí, de palafita, um baile, que não seria completo sem sua música ambiente.
Você dançava e dançava e gritava que um dia ia cair; um dia vai cair; um dia caiu.
Os que passam perto desse mangue - do seu mangue - dizem que ainda dá pra ouvir algumas notas daquela valsinha. E de vez em quando as algas sujas rodopiam os cabelos do jeito que você fazia.

sexta-feira, 2 de março de 2012

ESSAS MULHERES

À janela, nos primeiros raios de um sol de sábado, dou os primeiros tragos num cigarro de sexta e marco o batente com cotovelos ralados. Aperto os olhos enquanto fumaças me cegam e enxergo melhor aquela que passa de vestido em sua bicicleta; com a pele brilhando do suor da manhã e do sal do mar. Temperada para amar. Apaixonada pelo vento e apaixonando os que a estão vendo.
A morena do outro lado da rua, com sua sacola de compras e sua timidez quase nua. A inocência de frutas frescas da feira, de olhares indecentes e passadas indiferentes. Pode matar o homem distraído que corre na calçada com seus fones de ouvidos. Causar um acidente; uma tragédia; um engavetamento; um casamento. Causar dor e sofrimento.
Meu cigarro chegava ao filtro quando passava a outra, com cabelos vermelhos e boca pintada. Brilhava mais que o sol e tingia de neon a minha casa.
Apago no batente e jogo a bimba na calçada. Ao olhar pro interior, percebo que, delas, a mais bela acaba de levantar da minha cama. Com o cabelo bagunçado e um sorriso sem graça, põe seu vestido, pega sua bicicleta e será a próxima a passar por trás da minha fumaça.

domingo, 22 de maio de 2011

VALSA PARA A JOVEM ESCRAVA

Ele:
Mira. Mira, que tu eras, quem diria, a mulher que eu esperava em agonia.
Ia... ia e voltava como quem dizia, lá no fundo, não queria.
Corria sempre que eu deixava para trás o meu chapéu e a sua fantasia.
Fingia. Vestia seu melhor vestido, mordia o lábio alheio e dava a partida.
E eu morria... morria... morria.

Ela:
Olha. Molha. Eu nunca pedi para ser a heroína da sua história.
Que glória. Derrota. Espanco seus momentos sem vontade e te empurro para fora.
Tu choras. Derruba outro gole, foge, mole, e se apavora.
E toca. Toca, em meu corpo, seu suor à consciência e sai à forra.
E eu esqueço, te largo e te afago em outra hora.

A Terceira:
Eu sempre soube seus defeitos, não importa, escrevo e corro do seu jeito tão demente.
Ele é tão simples que se acaba num silêncio complicado e num desejo de tormento.
Atormentava sua alma e despejava algum concreto em sua poesia tão molhada e quente.
Nas brincadeiras dessas pernas, eram as deles que perdiam, e pendiam a algo errado e incoerente.
Finalizava nossa perversão num ménage gótico, arrastado, desgraçado e indiferente.
E eu fugia, pois a solidão é mais bonita do meu lado, longe dessa gente.

Foto: Camila Pistoresi

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A VALSA

Dessa vez não havia lágrima alguma. Não havia nada de transparente, pra ser mais exata. Apenas sangue. Muito sangue mesmo. Ele olhava ao redor, procurava um pouco de luz, acho. Mas não encontraria o que queria à noite. Não na minha noite. Aquela era a noite; e isso iria acontecer de novo, e de novo, tinha que acontecer.
Era uma bela noite para tingir alguém. Tirar-lhe daquele velho tom pastel que o acompanhava em todas as investidas e em todos os descaminhos. Estava descontrolada, não posso negar. Mas aquilo tinha de ser feito. E tinha de ser eu. Ele não podia ser mais rápido.
Me incomodava o fato daquele pobre coração bater. De correr algo quente dentro daquele corpo.
Então, montei todo o cenário para que a minha noite fosse perfeita, trouxe-o do jeito que queria à minha teia. Era preciso de poesia para enfiar amor naquele peito e estourá-lo por dentro. A morte dele, por si só, não seria poética o bastante para a minha licença.
E assim foi. Levei-o de volta para o mundo de onde o tirei. Me deixava feliz o fato de que, com certeza, ele ficaria feliz em seu habitat.
Ele, então, parou de procurar o que queria. Não sei se impressão minha ou fato, mas percebi um esboço de sorriso naquele rosto frio, daquele homem fraco. Deitou-se na poça que ele mesmo criou. Encostou-se. Descansou.

quinta-feira, 31 de março de 2011

SEM AÇÚCAR, COM AFETO.


Quando ela foi à cozinha preparar o café-da-manhã eu já a esperava com a xícara mais amarga. Não ia oferecer a ela o café outrora recusado. Não queria esquentar a manhã de um dia nublado.
Ela lançou o olhar que sempre lançava quando eu acordava de mau humor. Era uma gentileza irônica no lugar de  um simples bom dia. Aliás, era uma gentileza irônica pensar que, aquele, seria um bom dia.
Eu vestia luto da cabeça aos pés. Nunca havia acordado daquela maneira: nú, mas com o corpo em luto. Lutei para parecer natural, mas o natural me fazia muito mal.
Antes que ela pusesse seu primeiro pensamento do dia no lugar, eu já havia batizado o café. E antes que ela fizesse sua primeira oração, de bate-pronto, abri a boca para soltar um belo e cinzento: "Meus pêsames".
Eu me adiantei a tudo o que poderia vir depois, se ela o fizesse antes de mim. Me adiantei ao destino - e me adiantei ao meu próprio velório.
Antes que qualquer sinal de lágrima vestisse seus olhos, ela deixou que sua saia caísse. E decidiu que de casa eu saísse.
Eu senti que cada palavra dela tinha o gosto azedo do uísque vagabundo de ontem. E cada palavra que calei tinha o gosto amargo da ressaca de sempre.
Ganhei a aposta. Ganhei, antes mesmo, que ela dissesse o resultado. O seu olhar autoritário da manhã, de olhos tão claros que me faziam apagar, me cantaram o jogo.
Vesti meu luto, novamente, e saí de lá para o poço que, ela sabia, era a única que poderia me tirar.

quarta-feira, 9 de março de 2011

O CRIME DESCONTADO

Ela tinha olhos mais verdes que os morros que complementavam a paisagem em seu retrato. Plantada no ponto, sujeita a qualquer encontro.
Tinha um jeito tão doce que a acabava endurecendo, a tornava impraticável. A tornava para um canto e me deixava noutro lado.
Era um daqueles dias que eu passava a noite inteira sem saber o que fazer. A solução era beber, beber, beber e deixar amanhecer. E quanto mais claro ficava, mais escuros e molhados seus olhos focavam.
Não se sabe ao certo se garôa ou tempestade, mas encharcava tanto que fazia escorregar. Caía, mas ninguém sabe se doía. Levantava num salto e voltava a dançar.
Que jeito mais doce de se consentir. Que jeito mais duro de se reagir.
Ela tinha os olhos mais verdes e o jeito mais denso.
Mas de tenso, não penso, ele foi mais rápido.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

QUANDO A FANTASIA E A REALIDADE SE AFASTAM

- Lembra de mim?
- Você nunca esteve aqui.
- Estive sim, rasguei seus papéis e sua saia de flores.
- Eu saía com as flores.
- E eu ficava em branco.
- Talvez lembre. Talvez não queira. Talvez deseje.
Era mais uma noite fria de areia. Deserta como o gelo e a cevada.
Ele não queria saber de seu passado. Mas queria fazer seu futuro. De novo.
Era tão dela como a garrafa vazia de quem está imundo.
E ela... ela era tão dela como o líquido de quem um dia foi sujo.
- Você devia dar um jeito nessa sua aparência.
- Sim, estou bebendo.
- Isso por acaso melhora alguma coisa?
- Me acho mais bonito bêbado. É o que o espelho diz... quando acho um.
- Ou quando cai em uma poça.
Ela sabia mais dele que o próprio.
Ele sabia tanto dela quanto sabia de equações matemáticas malucas das quais nunca fez questão de aprender.
Parava, calado, pensando não ser tão previsível. Queria saber se havia alguma razão para uma mulher derrubar um homem apenas porque pode.
Pedia ajuda mas não queria saber da verdade à noite.
Eram seus instintos noturnos que o mantinham com o pé no chão. Que o faziam lembrar quem realmente era.
Que pesavam tanto em seus pés que o faziam atolar.
- Às vezes penso em você como uma criminosa.
- Talvez eu seja: roubei minha liberdade por um tempo. Bom, preciso ir embora.
- De novo?
- Preciso ir embora deste momento.
- Vá, por favor, sem dar tchau.
- Eu vou, mas você paga a conta.
- De novo?

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

É... a minha ideia de postar pelo menos um texto por mês foi pro saco. O trabalho tem me tomado muito tempo.
Mas logo eu volto com vários textos seguidos.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O SEU CÃO SEM DONO

Levantei e fui buscar a última latinha de cerveja que ainda gelava no freezer. A única coisa que ainda me fazia companhia, nesse tempo e espaço, era o cachorro que, abanando o rabo, pedia o mínimo de carinho e era ignorado.
A televisão no mudo. A música tocando. E a falta de cigarros.
Faltava, aqui, mais que cigarros. Faltava calor.
Como um bêbado, saí dessa casa, deixando aquele mesmo cachorro sem carinho.
Andei em busca de encontrar a mim mesmo dentro de algo que não existia mais.
Eu não existia mais. Bêbado e, ainda sem cigarros, voltei para o fim. Meu fim era somente o mesmo cão sem dono. O mesmo rabo abanado e sem nada.
Cão, me chama de cão?

Esse texto é do Roberto Neto (Betinho) em homenagem a mim.

sábado, 19 de junho de 2010

O RINGUE DE DOIS ESTADOS

Manteve o peito fechado o tempo inteiro depois dela. Qualquer faca entortava. Ele, torto, encostava.
Continha uma porta fechada. Um segredo afastado. Uma história inventada.
Outra crônica interrompida. Mais do mesmo. Sempre isso. Mais que isso.
Era meio que uma cegueira proposital. Sentia-se como uma compota de banana.
Assim, ela o deixava de joelhos. Como um pugilista - ele apanhava, ficava inconsciente e continuava de pé para o próximo assalto. De todos os assaltos, o dela foi o único com nocaute. De todas, ela era a única que colocava seu cérebro pra funcionar. Colocava sua cabeça fora do lugar.
Após vários e vários golpes em seu rosto, seus olhos e seu fígado. Após desfocar sua vida inteira. Ele continuava com uma fita em branco. Uma bandeira branca com a velha esperança da paz. A paz que nunca viria.
Agora, aquilo que via com saudade, olha com tristeza. Aquilo que via em branco e vermelho, agora vê em preto e segundo plano.
E daquela tristeza, tão remota da próxima cidade, fez maldade.
Da maldade fez limpeza.
E da limpeza... fez bobagem.

terça-feira, 18 de maio de 2010

CONSECUTIVO ERRO

Eu vejo a saia da moça, tão doce, de seda, sedenta, querendo voar.
E suas pernas de louça, na brisa, tremendo, me faz arrepiar.
Era tão bela, tão fina, de fato, tinindo, deixando encharcar.
Outra ressaca, entrada, saída, mais outra ferida ao começar.
Era tão sóbrio, o desejo, que o matava de medo só de pensar.
Novo sentido, outro beijo, o brejo, a sarjeta, um poço pra se afundar.
Um desencanto.
Dois prantos.
Menina, enxugue seu rosto, pro nosso próximo embriagar.


segunda-feira, 26 de abril de 2010

O ÚLTIMO DIA DO MÊS DA CHUVA

Fazia frio. Não por causa da estação, da chuva ou da brisa, o frio vinha do tédio.
O som ambiente era de caos e fantasia. Tudo parado, congelado, só hemácias movendo - e células amareladas de nicotina no contra-fluxo.
Mesmo do último andar, o olhar dela era óbvio ao horizonte. Tão frio e úmido quanto o clima da metrópole cinza.
As águas de março haviam se antecipado - e o verão se escondido, pelo menos, nove meses antes.
O tom alaranjado do outono não existia, mas o vermelho e o amarelo se misturavam numa sincronia lisérgica perfeita.
E ele cinza...
Ela rosa, botão e espinhos.
Na tevê, a previsão para os próximos meses era de frente fria, ar seco, pancadas de chuva e poluição, de vez em quando, se lhe fosse vantajoso.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Prêmio Top Blog

É o segundo ano que me indicam. Eu gostaria MUITO de saber quem me indicou. E gostaria muito de saber como faz pra validar esse treco e ganhar meus 3 votinhos tão valiosos para o meu ego.