
Daqui desfocada, meio manchada. Faz com que as estrelas pareçam pequenos peixes e, ela, um buraco no oceano.
Ninguém me nota. A senhora que passa com sua bengala; a garota e seu cachorrinho; o rapaz que acabou de assaltar o bar. Ninguém me vê.
Um simples mendigo, é o que devo parecer. Pobre, sujo, caído. Morto.
E ninguém percebe.
Nem os mendigos, meus amiguinhos de fundo, prontos pra me trair.
Traição não é a palavra certa para eles. Cúmplices, talvez. Assistiram de camarote.
Só não comeram pipoca durante, porque, bom, suas mãos estavam ocupadas estendidas, pegando moedas.
Ela sim, me traiu. E não penso em me vingar. Não posso pensar.
Passaram-se 6 segundos e ainda não me perguntei o porquê de estar aqui, jogado numa poça que, há pouco, era simples e suja água, com suas larvas habituais. Agora avermelhada, e com uma larva a mais.
Antes de atirar, ela disse que isso era o fim do amor. Um fim trágico para um relacionamento igual. Ou um fim igual para outro relacionamento trágico.
Ninguém vai sentir minha falta. E, quem sabe, daqui a algumas horas, esses homens que vejo pelo reflexo, na poça, desfocados, comam minha carne. Depois de dois anos de sofrimento, eu seria útil: alimentaria seres que necessitam de carne, fibras e ferro – espero que aquele que engolir a bala em meus pulmões não tenha dentes.
Eu tive menos de dez segundos pra pensar em toda a minha vida, e não pensei em pedir perdão. Só Deus sabe para onde vou, daqui – talvez nem ele.
E agora não há mais tempo para perdoar ou pedir perdão. Nem para ser perdoado. Já está feito, e o sétimo segundo está acabando com a minha consciência, chegando ao fim. Eu também.