terça-feira, 23 de junho de 2015

PINTURA PÓSTUMA DE ELAIR

Monte, então, uma moldura imaginária. Em primeiro plano, ponha dois belos pares de pernas – um bem branquinho, quase de porcelana. O outro, digamos, queimado, de pêlos arrepiados. Anexado a tais, dois vestidos que fazem questão de mostrar cada contorno, risco, rascunho, esboço e ponto de fuga das proprietárias das pernas. Praticamente feitos de nanquim sobre papel manteiga. 
O rosto? Não, nada disso, nada de identidade. Histórias tão tristes, como essa que vos conto, não merecem nomes, sobrenomes, escolaridades ou profissões.
Segundo plano: luzes. Muitas e muitas. De cores, calores e intensidades diferentes. Buzinas e muita gritaria – sim, o quadro é meu e nele haverá sons. 

O cheiro: uma mistura fina de esgoto, urina, gás carbônico e um leve toque do perfume vagabundo favorito das melhores profissionais dessa região. Alguns garis começam a dar as primeiras vassouradas da madrugada. As tais crianças que vivem de luz vão para só deus sabe onde. E os primeiros homens-de-família, que muito batalharam para conquistar tal definição, surgem para esperar seus pacientes transportes ao trabalho. A pincelada final, se assim podemos dizer, são dois travestis, enfiados pela metade do corpo, um em cada janela do carro, motorista e passageiro. Deve ser deste a buzina mais alta.

Se isso fosse um conto, poema, poesia, ensaio, crônica, romance, ou, por que não, uma carta de amor, bastaria que encontrasse umas quantas palavras bonitas, encaixasse nos lugares certos, pusesse uma rima aqui, outra lá e, pronto, está acabado. Mas tratando-se de um quadro, não o basta imagens bonitas, precisa de algo triste, algo que agonia, algo que choca. Na arte em questão, o que choca vem detrás do quadro. Pois é sabido que ele ainda é uma tela em branco. Um pouco manchada do tempo, talvez.

É sabido também – acredito que seja, pelo menos - que as protagonistas desta fotografia tratam-se de uma loira e uma morena. E, não, não, apesar do lindo cenário no momento da pintura, elas não são o que vocês estão pensando. Vamos chamá-las, apenas, transeuntes. Basta que estavam no lugar errado, na hora errada. Ou era eu quem estava neste tal lugar. A verdade, se há verdade para quem sempre viveu num mundo de mentira, é que este lugar é o meu. Sou eu o rei, o dono, imperador e presidente dele. Eu era, ali, o único que tinha o direito de ir e vir. Mas decidi ficar.

Agora, lembrem-se dos pares de pernas de mais cedo. Acredito que vocês também concordem que seria impossível não admirá-los. Perder uns bons segundos, que parecem horas, ainda mais a mim, que há muito não vislumbro com tanto gosto, nem tanta proximidade, tal perfeição. Comia com os olhos, de uma maneira mais grotesca de dizer.

O que eu não podia imaginar, nem vocês, é que tais pernas vinham correndo de desagradável discussão, daquelas bem antigas, protagonizadas pela insegurança masculina gerada por tramas já pregadas no inconsciente coletivo. A mim, que da rua venho e na rua vivo, basta dizer que me pertence tudo o que vejo e que pertenço a tudo que me vê. E pertenci, de verdade, por uma fração de segundo, a uma das donas das pernas. Não me pergunte qual – lembre-se que eu disse que identidades não importam.

Mas bastou uma mirada, dessas de canto de olho, para que um dos dois rapazes, que vinham cheios de amor e disposição para iniciar o segundo tempo da discussão, parasse ao meu lado e começasse a gritar com toda a educação que só um animal faminto e raivoso consegue demonstrar, coisas como “tá olhando o quê” e “nunca viu, imbecil”. Eu bem estava acostumado com tal gentileza, mas no momento não entendi bem do que se tratava.

Bem que percebi que uma das donas levava consigo marcas de dedos, cuidadosamente cravadas, com o carinho que o tempo há de ter dúvidas de quando conseguirá livrar-se, num dos braços. Bastou esse segundinho para perceber o que estava acontecendo e, por que não, aceitar o que o destino me reservava.

Foi essa, então, a última cena que tive o prazer de deleitar antes de encerrar minha história neste quarteirão, nesse metro e meio quadrado que me pertence, na minha cama de papel. Deixaram, ali, bem claro o que pertence a quem e o limite entre o mundo de um e os mundos dos outros. Quase uma guerra de classes, mas sem classe alguma. Se eu fosse juiz, diria que fui vítima de um crime passional sobre terceiros. Mas esse poder não é meu. Resta que fique feliz pois me deram a opção de aceitar. A visão não escureceu. Pelo contrário: clareou. Eu disse que nesse quadro havia todo o tipo de luz.

Monte, então, uma moldura imaginária. Deixe-a assim. Sem tintas, nem lápis, só algumas manchas a sujar. Pois quadros como os meus não hão de faltar.

foto: https://www.pinterest.com/pin/480688960205376798/


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